Banho 29







Sobre o Banho 29
Francisco Castelo
Texto actualizado em 2017.09.28

Resultando da tradição oral, compilei, há anos, aquilo que me foi possível acerca do banho 29. Esta versão tem tanto valor como qualquer outra, posto que se desconhecem fontes fiáveis que enunciem teor substancialmente diferente:

«O banho 29 é um misto de tradição folclórica e de ritual transmitido de pais para filhos com a crença que o banho daquela noite vale por 29 banhos. As suas origens são incertas. Quer provenientes de épocas muito antigas e ligadas aos ritos de fim do Verão, quer resultantes da herança árabe, o costume manteve-se. As gentes dos campos já não vêm em grupos animados, com os seus burrinhos e carroças, mas os locais continuam a cumprir a tradição. Hoje, são grupos de jovens, mais foliões e menos rituais, que aproveitam essa noite para assar chouriço e contar histórias à volta de uma fogueira. À meia-noite o momento do banho leva muitos ao mergulho nas águas fugazmente iluminadas pelos clarões do fogo-de-artifício. Em Lagos, é na Solaria e na Praia da Batata que se junta maior número de entusiastas, reunidos pela proximidade da animação musical e do concurso de trajes de banho antigos. A tradição também se cumpre na Meia Praia, com os entusiastas agrupados em torno das fogueiras alinhadas ao longo do areal. Ali se bebe, come, conta e canta antes e depois do tradicional mergulho no mar.»

Desconhece-se a existência de qualquer fonte histórica ou texto historiográfico que revele cabalmente o surgimento do banho 29. Existem, sim, descrições de escritores e jornalistas que referem superficialmente esta tradição, inserindo-a num contexto transversal, quer seja de crónica, romance ou, numa abordagem geograficamente marcada, incidindo sobre a descrição da vida e costumes da região. São, regra geral, descrições muito sintéticas e genéricas.

Sobre este costume conhecem-se as lendas, com as suas variações locais (conf. Aljezur, Lagos, Fuzeta, etc.), que não suplantam uma dimensão folclórica. Presumo que um estudo mais aprofundado sobre esta tradição deverá partir de uma base etnográfica e associar as atenções da antropologia social. Quanto à historiografia, estará sempre dependente da existência de fontes escritas, sejam elas mais ou menos completas ou apenas fragmentárias, pois sem estas não é possível produzir conhecimento histórico.

O texto seguinte foi redigido tendo por base a obra “Festividades Cíclicas em Portugal” da autoria de Ernesto Veiga de Oliveira, que será provavelmente o melhor texto de cunho etnográfico que existe sobre o assunto:

Os banhos santos apresentam, no Algarve, algumas diferenciações do resto do país sendo a mais notória o facto de se celebrarem em duas datas distintas: a noite de S. João, a 24 de Junho, e o dia 29 de Agosto (o S. João da Degola); em 24 de Junho as gentes do campo e da beira-mar vão aos banhos da Serra, nomeadamente às termas de Monchique, celebrando aí o banho santo com danças e música pela noite fora. Ao contrário, as gentes da Serra e do interior vão, de preferência tomá-los às praias; mas no dia 29 de Agosto. Porém, nas praias do litoral algarvio, o banho santo toma-se antes do nascer do Sol, enquanto a água está “benta”.

«Na Praia da Carrapateira (Aljezur), a 29 de Agosto, banham-se efectivamente pessoas e animais: logo pela manhã elas vão chegando, umas a pé, outras montadas em burros, a a caminho do mar, pelas veredas mal rasgadas nas ladeiras de fortes pendentes de xisto, para os aldos da Pedralva. Nesse ano (1949) chegavam com merendas e alegres sob um sol já impiedoso. Na praia, cada grupo tomou lugar junto à escarpa, alguns mesmo nas grutas cavadas da rocha, e ali pousaram as merendas e se despiram. Eram mulheres, raparigas, rapazes e poucos homens; destes alguns tinham preferido pescar. O banho foi animadíssimo. O primeiro contacto com a água é difícil, para quem está pouco habituado a banhar-se. Então trava-se a luta entre os mais afoitos e os mais receosos. Uns atiram água aos outros, mas o mais frequente é obrigarem os outros a mergulhar à força. Uma vez molhados sem remédio, já não há receio e todos riem e brincam até não poderem mais. Quando saíram da água vinham com os lábios roxos de frio. Mas depois correram, saltaram pela praia, até aquecerem. Depois de brincarem bastante, mudaram as camisas e as cuecas pela roupa seca e foram à merenda. Mas pela uma hora da tarde já estavam na água outra vez, acrescidos dos que tinham chegado depois (relato de Fernando Galhano).»
«… Os rebanhos de cabras descem à praia e são levados aos grupos para os animais serem banhados. Alguns obrigam-nos a subir a um rochedo, e depois a lançar-se à água. Os banhos dos animais – cabras, chibos e ovelhas – têm lugar, neste dia, desde a praia da Zambujeira (em frente a S. Teotónio, Odemira) até Portimão, por Aljezur, Bordeira, Carrapateira, etc. (…)»
VEIGA DE OLIVEIRA E. - Festividades Cíclicas em Portugal - Ed. D. Quixote 1988


Julgo que a abordagem mais profícua para apresentar e divulgar este costume será a da ficção, procurando-se a maior verosimilhança e a melhor aproximação à tradição oral, e alertando sempre, para o carácter ficcional da explicação. Neste âmbito, o repertório literário conta com várias peças produzidas. A título de exemplo apresento o conto/lenda que redigi em 2012:

Ao jeito de uma Lenda – lenda falsa neste caso –, imaginei uma pequena história que poderia, com a plausibilidade admissível às lendas, explicar a tradição do Banho 29. Reunida a estrutura e os elementos mais comuns a esse tipo literário, que atribuem à presença árabe o fundo de muitas tradições portuguesas, sobretudo do Sul do país, aqui fica esta reescrita que de minha autoria só reconheço a construção sintáctica, atribuindo à memória colectiva e à tradição popular a paternidade do conteúdo formado por elementos que os leitores facilmente reconhecerão em muitas outras lendas de cunho semelhante.

A moura de Lagos
Decorria o tempo em que Lagos era governada por um alcaide mouro que vivia no castelo com uma filha e um sobrinho. O alcaide tinha feito da filha a noiva do sobrinho Ahmed que representava a única família de sangue que tinha nestas bandas do Al-garb, pois a filha nem era moura, mas uma cristã cujos pais tinham morrido numa batalha, e que o alcaide tinha adoptado. Entretanto o tempo passara e a pequena transformara-se numa bela jovem, que muito adorava e animava o velho alcaide.
Em meados do séc. XIII, reinando em Portugal D. Afonso III, o Algarve foi alvo da reconquista cristã e o castelo de Lagos foi fortemente atacado, vendo-se os mouros obrigados a lutar desesperadamente. No fervor da luta, a filha do alcaide saiu para a rua e, sem demonstrar qualquer receio, vagueou por entre a confusão da turba beligerante. Eis que um jovem guerreiro cristão repara na rapariga e acerca-se dela interrogando-a sobre o que andava a fazer. A jovem responde-lhe que não compreende a razão daquela peleja, da destruição e do ódio que lança homens contra homens, lutando como se fossem feras selvagens. E revelou ao jovem guerreiro que tinha sido por causa de uma guerra assim que tinha ficado órfã. O guerreiro ordenou aos seus homens que retirassem dali a rapariga e que a guardassem na sua tenda, onde ficaria a salvo de alguma flecha ou espadeirada acidental.
A batalha, liderada por D. Paio Peres, é coroada de êxito e os cristãos tomam a praça aos mouros. Ofertada a vitória ao monarca português, este retribuiu concedendo aos valorosos guerreiros todo o saque da batalha. Por via disso, a rapariga ficou a viver com o cavaleiro cristão, por quem rapidamente se apaixonou, e os dois passaram a viver felizes na Vila de Lagos.
Um dia em que a jovem moira passeava à beira rio, na companhia de uma aia, surge-lhe um pedinte, suplicando, de mão estendida, a providencial esmola. A jovem reconheceu imediatamente o sobrinho do alcaide mouro e seu antigo noivo. Mas este, conhecendo o resultado do desfecho da batalha, nunca lhe perdoara o facto de ela viver com um cavaleiro cristão e, perante a evidente felicidade que a jovem demonstrava, Ahmed lançou-lhe um feitiço que a aprisionou para sempre nas águas que banham Lagos; feitiço do qual só se libertaria quando, numa noite de Verão, um jovem se atrevesse a entrar nas águas e, encontrando-a, lhe desse um beijo. Mas esse jovem não podia ser este com quem vivia, pelo que seria muito improvável que alguma vez o feitiço se quebrasse.
Concluído o aziago anúncio, imediatamente a jovem se desvaneceu numa espiral de fumo para nunca mais se ver, para grande pavor da aia que correu rapidamente ao castelo, a contar o sucedido. Fizeram-se buscas e esquadrinhou-se toda a região mas sem se encontrar sinais da jovem ou do mendigo.
Daí para cá, e até aos dias de hoje, muitos são os jovens que na noite de 29 de Agosto tentam encontrar a jovem encantada para a resgatar ao seu feitiço. Porém, quer devido à agitação das águas do mar, quer pela interferência das poderosas luzes artificiais ou dos fogos-de-artifício que festejam a efeméride ou por não serem suficientemente corajosos ou perspicazes para vislumbrar a imagem da jovem, ou por não ouvirem o seu murmúrio suplicante, nenhum conseguiu, ainda, encontrar a linda moura e desfazer o encantamento.

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