Lembras-te Francisco?


Lembras-te, Francisco? Lembras-te de quando reuníamos a trupe de vizinhos dos Montes da Areia e da Rua da Aldeia e, cavalgando e empunhando paus de vassoura - cavalo e espada - percorríamos em formação de combate o rossio de S. João tentando desmontar o inimigo? E de quando disputávamos o campeonato nacional de hóquei, com patins e tacos de fabrico artesanal, sem nunca sair da aldeia, sem treinadores nem repórteres?

E lembras-te das viagens feitas na carcaça do velho Peugeot, de pé sobre os bancos porque as pulgas e os eventuais percevejos nos assustavam um pouco?

E as travessias oceânicas numa caixa de madeira de metro e meio por noventa, desde o cais até à Ponta da Piedade? Lembras-te disso?

E como era gratificante pular de barco em barco, no rio, ou no cais quando chegavam as enviadas com sardinha e carapau. Que navegações magníficas fazíamos nesses tempos.

Mas era nos barcos varados no braço de rio, no acesso ao estaleiro, que viajávamos em paquetes que num só dia iam e vinham aos fiordes noruegueses, engajavam a maltezaria de Lagos em tripulações de piratas das Caraíbas, redescobríamos as costas de África, o Brasil e a Índia. Era nesses velhos gazolinos, traineiras e lanchas de cores desbotadas, com tabuados podres e odores suspeitos que a puta da imaginação não conhecia limites.

Por vezes, a tripulação amotinava-se e dividia-se deixando a bordo da nau encalhada os mais obstinados, ou musculosos, enquanto outra facção abandonava o navio e recolhia-se ao interior de um caduco depósito de água, de traineira, e o filme mudava para as aventuras submarinas do Capitão Nemo ou do U-399. Desde que a escotilha superior funcionasse até o transformávamos em tanque Panzer, quando o mar já não apelava. E os almoços esquecidos – que isto de andar em guerras e aventuras esforçadas tira a fome – garantiam ralhetes à chegada ao aquartelamento. Mas era assim mesmo. Tínhamos que navegar muito, ou nunca seríamos dignos herdeiros das tradições dos que dobraram o Bojador e o Boa Esperança, chegaram à Índia e atravessaram o mar imenso para dizer ao rei que os franceses já tinham partido.

Hoje, são iates que lá estão na novel Marina. Limpinhos, lustrosos e cheios de mariquices high-tech. Desconfio que mesmo quando saem para o mar, não navegam nada.

E tu, Francisco, continuas a navegar? Remendaste as tábuas partidas dos teus sentimentos e deixas que a imaginação ainda te emocione? Por onde voas agora no velho hidroavião Catalina que sempre sonhaste pilotar? Eu sei que navegas. E quem navega, ou parte à descoberta do mundo e encontra partes de si, ou parte à descoberta de si e encontra o mundo.

Não fundeies o navio ou o hidroavião, Francisco, não largues a âncora da imaginação. Navega, navega sempre!

publicado em 17 de Maio de 2007 em
http://bloguecartas.blogspot.com/

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