Do Inefável Odor do Progresso


Há coisas que as fotografias não captam e que os filmes não ousam fixar: os cheiros. Mais precisamente, os fétidos miasmas que, sob a capa luminosa do Progresso, se insinuam pelas narinas da urbe como quem traz alvíssaras — mas só a peste traz.

No dealbar do século XX — há, pois, mais de uma centúria — a cidade, em sobressalto talvez de pudor olfactivo ou impulso urbanístico, terá rejeitado a permanência das estivas e das fábricas de conserva de peixe no seu casco urbano. Tal exílio fê-las procurar repouso nos confins da Tapada de S. João, no extremo norte da cidade, senão na prática, ao menos no papel dos projectos aprovados. Ali, supunha-se, os efluvios marinhos da indústria piscatória esvoaçariam mais livres, menos ofensivos às narinas dos que habitavam a civilidade.

Passou-se um século — e com ele muito sabonete — e, qual vingança do Atlântico, o mesmo odor pestilento regressa, agora sob nova roupagem, dita sustentável e moderna. É a aquacultura offshore, aquele aprazível ramo económico que transforma o mar em tanque e o peixe e marisco em produtos de linha de montagem. De lá — do tramo sul do Porto de Pesca de Lagos — emana um perfume de seres marinhos em dissolução, que ora se entranha nas vielas da cidade, se o vento sopra de Leste, ora conquista o primeiro terço da extensa Meia Praia, se sopra de Oeste.

Mas não nos esqueçamos do vento Norte, sempre fresco, sempre traiçoeiro: leva aquele bafo putrefacto até ao coração turístico da urbe, lançando sobre a Praia da Batata uma fragrância mais condizente com contentor de resíduos do que com postal ilustrado.

E tudo isto, dizem-nos com ar compungido e gráfico de PowerPoint, é pelo bem da Economia, essa deusa insaciável, essa Vénus de cifras e rendas. A aquacultura visa, afinal, compensar a preguiça da Natureza, que já não produz marisco ao ritmo exigido pelo mercado — imagine-se o desplante! E assim se cultivam bivalves em quantidade, para exportação, é claro, porque o português, esse, cheira muito, mas prova pouco.

Nada disto seria particularmente grave, não fosse o detalhe de interferir com a principal actividade económica da cidade: o turismo. Esse, sim, delicado e sensível, pouco dado a fragrâncias orgânicas de decadência marinha. Há quem venha ao Algarve em busca de maresia — mas não de pestilência.

Eis os inebriantes caprichos do Progresso: produz-se riqueza enquanto se produz ruína, e embala-se o futuro em vapores pestilentos, enquanto se desvaloriza o presente com um sorriso institucional.

Inspiremos, pois, muito e rápido, todo o pivete porque o Progresso assim o exige.

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